19/10/12 14h40

Ciência vista a olho nu

Valor Econômico

Um belo dia, antes da virada do milênio, o Hospital A.C. Camargo, em São Paulo, contratou um engenheiro agrônomo - e não era para montar uma horta no lugar que é referência em estudos, prevenção e tratamento do câncer. A iniciativa do então diretor, o oncologista Ricardo Brentani, tinha a ver com uma ideia genial para que a ciência brasileira entrasse na era do genoma - como de fato ocorreu depois. Em maio de 2012, a pesquisa oceanográfica de São Paulo ganhou um investimento de US$ 11 milhões na forma de um navio com nome de estrela, o Alpha Crucis, para voltar a desvendar o que acontece no mar do Brasil. Na Unicamp, uma das mais importantes universidades brasileiras, pesquisadores buscam as causas de um drama mundial, a obesidade, estudando a inflamação de células no cérebro. O que une esses centros de conhecimento distintos no tempo e no espaço é o foco em pesquisa em terrenos paulistas. A convergência ocorre em uma sigla - Fapesp -, a cinquentona e poderosa Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.

Trata-se, praticamente, de um miniministério localizado em um prédio de concreto aparente no Alto da Lapa, na zona oeste de São Paulo. A musculatura da fundação, que faz 50 anos neste ano, se traduz em uma verba prevista para pesquisa em 2012 que deve ultrapassar R$ 1 bilhão. Há mais de 18 mil projetos em curso, de sofisticados estudos de biologia molecular a pesquisas no campo da astronomia. Mais da metade da ciência feita no Brasil é produzida em São Paulo. O que se planeja agora é um salto bem maior: tornar muito mais visível mundialmente as pesquisas feitas nos centros de estudo e universidades paulistas. "Está na hora de transformar São Paulo em um 'hub' científico mundial", anuncia o diretor científico da fundação, o carioca Carlos Henrique de Brito Cruz.

Há uma ampla estratégia em curso para fazer a ambição saltar do plano das ideias para o da concretude. Uma delas acontece nestes dias. Um time de diretores e pesquisadores da Fapesp está no Canadá e nos Estados Unidos participando de seminários em Toronto, Cambridge e Washington. Discutem com professores da Universidade de Toronto e especialistas do Massachusetts Institute of Technology, o famoso MIT, formas de aumentar a colaboração entre cientistas brasileiros, canadenses e americanos ou avaliar os projetos que já estão em andamento. Nos seminários está em análise um espectro amplo de estudos - desde o tratamento de pacientes com obstrução pulmonar a técnicas de descontaminação de solos e cursos d'água.

Périplos similares foram feitos nos últimos anos. A Fapesp tem hoje parcerias com 18 agências e instituições de financiamento à pesquisa em vários países, além de acordos com 12 agências no Brasil. São 41 convênios com instituições de ensino superior em diversos lados do mundo. Tem projetos com 21 empresas no Brasil e no exterior. O nome Fapesp está ancorado em universidades, agências e centros de pesquisa na Alemanha, Argentina, Canadá, Dinamarca, nos EUA, França, Espanha, Holanda, Israel, México, Suíça e Reino Unido. Esse movimento só tem feito crescer.

Um dos principais segredos desse vigor está em um artigo da Constituição Estadual que assegurou que o Tesouro garantiria à fundação "quantia não inferior a 0,5% de sua receita ordinária". O mecanismo, que existe também nas Cartas de outros Estados, foi seguido à risca em São Paulo, sem sofrer abalos com os rumos da política no passar das décadas. O percentual que a Fapesp recebe de toda a receita tributária do Estado dobrou com a Constituição de 1989 e passou a 1%. No estatuto da fundação outro artigo importante estabelece que não se pode gastar mais do que 5% do orçamento com despesas operacionais, o que a livra de ser depósito de cargos políticos. Assim, 95% do recurso que a Fapesp recebe vai para apoio em pesquisa. A fundação enriqueceu e o dinheiro para pesquisas, também.

Os pesquisadores vinculados a alguma instituição paulista se beneficiam da regularidade dos recursos financeiros que a instituição destina à pesquisa e conseguem planejar seus passos a longo prazo. Foram R$ 800 milhões para pesquisa em 2010, perto de R$ 930 milhões em 2011 e mais de R$ 1 bilhão agora. "A impressão é que os paulistas são muito ricos", diz o glaciologista gaúcho Jefferson Cardia Simões, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Na sua visão, a atuação da fundação de amparo à pesquisa do Rio Grande do Sul, uma similar à paulista, "é muito acanhada". Explica: "São poucos os investimentos, e em projetos de pouca envergadura. Nada comparado à escala do que a Fapesp investe. Ela se diferencia do resto do país."

"Tenho dinheiro da Fapesp desde que era aluna de mestrado", resume a geneticista Mayana Zatz, dona de currículo quilométrico, mais de 300 trabalhos científicos publicados e conhecida pela luta para a aprovação das pesquisas com células-tronco embrionárias no Congresso e no Supremo Tribunal Federal. Desde 2000, ela coordena o Centro de Estudos do Genoma Humano, o prédio mais moderno do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo, uma referência na América Latina. Ali, um time de cientistas faz o atendimento genético de 2 mil portadores de doenças neuromusculares ao ano. "É uma via de duas mãos", afirma Mayana. "A gente oferece pesquisa de ponta para as famílias." Quando os estudos começaram, existiam sete formas de distrofia muscular. Atualmente, esse leque saltou para mais de 30.

É também ali que o grupo de pesquisadores procura entender os mecanismos de envelhecimento saudável na população brasileira e descobrir o potencial das células-tronco humanas para regenerar músculos e neurônios. Seu projeto mais recente, iniciado em 2011, é o chamado 80+. A ideia é sequenciar o genoma - o código genético - de pessoas com mais de 80 anos que estejam bem de saúde. A partir daí será criado um banco de dados que ajudará a entender o envelhecimento com boa qualidade de vida ou descobrir mutações genéticas que auxiliem na definição de prognósticos. "Queremos entender, por exemplo, quanto a genética e o ambiente são responsáveis por um envelhecimento saudável", diz.

O centro de pesquisas comandado por Mayana desde 2000 é também um Cepid financiado pela Fapesp. A sigla quer dizer Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão e batiza centros multidisciplinares com financiamento por 11 anos e seleciona projetos competitivos mundialmente. Na rodada de 2000 foram escolhidos 11 desses centros e está para sair uma nova fornada. É um financiamento importante, que pode chegar a R$ 4 milhões ao ano e dá fôlego à pesquisa. Mas tem prazo de validade: 11 anos. "Os Cepid existem para que se ataque um certo desafio de pesquisa", declara Brito. "É raro ter um desafio de pesquisa que dure 40 anos", ironiza.

Ter um desses centros de pesquisa foi primordial para os estudos do A.C. Camargo, o maior hospital de câncer do Brasil, que atende 16 mil novos casos ao ano e realiza 11 mil cirurgias. É o único hospital particular que tem um curso de pós-graduação em oncologia, incluindo doutorados. Saem dali 60% dos artigos científicos do país em estudos sobre o câncer. O A.C. Camargo é original também em outro aspecto: é o único hospital privado que tem um Cepid e um Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT), com apoio federal através do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, o CNPq. Ou seja: é uma instituição que forma pesquisadores, não trata apenas dos doentes.

O hospital é o sétimo cliente da Fapesp, vindo depois das universidades, orgulha-se em dizer o professor Fernando Augusto Soares, presidente da comissão de pós-graduação. "Não há hospital no Brasil fazendo pesquisas como nós fazemos", assegura. Este perfil incomum tem raízes há mais de dez anos, quando o professor Brentani, morto em 2011, liderou um quadro de cientistas dentro do Projeto Genoma do Câncer Humano. Mas esta mistura de hospital e ciência começou bem antes, quando Brentani se interessou pelo sequenciamento do genoma da bactéria Xylella fastidiosa, que ataca plantações de laranja. "Foi então que contratou o agrônomo", diz Soares. "Brentani teve a visão de que um hospital que estuda câncer não podia ficar fora daquele estudo, tinha que dominar aquela técnica. Ele percebeu que ali estava o futuro."

O resultado desta aposta é conhecida: o estudo do genoma da Xylella virou capa da prestigiada revista "Nature" e os laboratórios daquela época formaram a base das pesquisas em câncer do A.C. Camargo. "Falar de genômica ficou comum nos corredores", lembra Soares. Hoje o hospital tem um banco de tumores com amostras colhidas em 28 mil pacientes e estuda tipos de câncer com mais incidência no Brasil. "A nossa marca é a pesquisa e o Cepid foi fundamental nesta história toda", diz o professor. "Não se encontra nenhum pesquisador em São Paulo que não diga que a Fapesp foi muito importante para a sua pesquisa."

Pior é que é verdade. Parece um mantra: "Qualquer pesquisador do Estado de São Paulo vai tentar fazer seu estudo com a Fapesp", repete Michel Michaelovitch de Mahiques, diretor do Instituto Oceanográfico da USP. Ele até que tentou conseguir recursos do governo federal para encontrar um substituto ao lendário navio Professor Besnard, que por 45 anos contribuiu para os estudos oceânicos brasileiros. O Besnard sofreu um incêndio em 2008 e as pesquisas oceanográficas ficaram no limbo. "Ao bater na porta do governo federal escutei: 'Ah, mas vocês têm a Fapesp...'".

Mahiques foi então à fundação paulista. "Fui sabatinado como se estivesse defendendo uma tese", conta. "Me mandaram submeter um projeto." Ele submeteu, o projeto foi aprovado e a Fapesp comprou um navio no Havaí. Investiu US$ 11 milhões em uma reforma completa e surgiu o Alpha Crucis - o nome remete à estrela que representa São Paulo na bandeira do Brasil -, navio-laboratório que permitirá pesquisas oceânicas e foi doado à USP. "É um navio de pesquisa com todos os equipamentos", orgulha-se o professor. A embarcação nem realizou sua primeira missão e a fila de pesquisas já a mobilizará pelos próximos três anos. O navio será muito utilizado em estudos em biodiversidade e mudança climática, duas áreas estratégicas para a Fapesp.

Do total de investimentos da fundação, 27% vão para a área da saúde. Em seguida vêm as ciências biológicas (17%) e agrárias (9%), o que significa que mais da metade dos recursos é destinada às chamadas ciências da vida. O Biota, por exemplo, é um megaprograma de pesquisa da biodiversidade que tem mais de 12 anos. "A ideia de criar um programa de pesquisa em caracterização e conservação da biodiversidade nasceu em 1995, a partir de uma experiência na Secretaria de Meio Ambiente de São Paulo", conta o biólogo Carlos Alfredo Joly, coordenador do Biota. "Mas esbarrou na dificuldade de vincular a produção de novas informações biológicas, o tempo da pesquisa, com o tempo da política. São diferentes", pontua Joly, que também é professor de biologia da Unicamp.

A proposta foi levada à Fapesp e vingou. Um grupo de cem pesquisadores que trabalham na área começou a sentir necessidade de organizar a pesquisa nesse campo. O primeiro passo foi realizar um diagnóstico do que já existia, criar um grande banco de dados, aperfeiçoar mapas. O Programa Biota indicou ao governo quais são as áreas prioritárias para conservação e restauração - e três unidades de conservação foram criadas.

O Biota é um projeto de quase R$ 100 milhões investidos entre 1998 e 2011. Engloba desde inventários da distribuição de espécies no Estado a estudos sofisticados que empregam ferramentas de biologia molecular. Envolve de micro-organismos a predadores do topo da cadeia, plantas, peixes, aves. "O primeiro aspecto que faz a Fapesp fundamental para um programa com essas características é a garantia de continuidade", diz Joly. "Ter perspectiva de longo prazo é fundamental para avançar em ciência e estudar biodiversidade."

Ele lista outros dois pontos. "Os projetos são avaliados pelo seu mérito científico, não há interferência política na avaliação", diz. Por fim, é construtivo que pesquisadores tão qualificados quanto os autores do projeto façam a avaliação dos méritos do estudo. O Biota, considera Joly, deu visibilidade nacional e internacional à Fapesp. E para os paulistas? "Todas as nascentes dos rios importantes do Estado estão na Mata Atlântica. Toda água que utilizamos na cidade, nas indústrias e na agricultura é produzida ali. Polinizadores como abelhas polinizam não só a floresta, mas também culturas de soja e laranja", explica. "São vetores de produtividade agrícola. Esses aspectos não são considerados quando se pensa na conservação das florestas."

A Fapesp está por trás de pesquisas como o estudo das causas da obesidade, um problema que afeta pessoas no mundo todo. Nos EUA, na década de 50, perto de 8% da população podia ser considerada obesa - índice que hoje é de 50%. No Brasil, os obesos já são 25% a 30% da população e a previsão é de chegar à metade dos brasileiros em 2025. Lício Velloso, professor titular da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, estuda há dez anos a relação entre a inflamação do hipotálamo (região do cérebro responsável pela regulação da fome e do gasto de energia) e a ingestão de gorduras saturadas - e não somente ao hábito de comer muito. Ele testa ratos em laboratórios para estudar essas relações.

A história, simplificadamente, acontece assim: o indivíduo come gorduras saturadas presente em carnes bovinas, suínas e peles de frango, por exemplo. A gordura se distribui pelo corpo, chega ao cérebro e lá é reconhecida como algo que causa dano. Ocorre uma resposta imunológica e as células do hipotálamo começam a inflamar. Com o tempo, o processo danifica os neurônios que controlam a fome. "O neurônio começa a obrigar a pessoa a comer mais do que precisa", explica Velloso. As pesquisas avançam em vários fronts e agora chegam ao desenvolvimento de fármacos que possam, por exemplo, produzir métodos anti-inflamatórios com segurança.

Há vários grupos estudando obesidade na Unicamp, com alunos de mestrado e pós-doutorado envolvidos, a maior parte com bolsas concedidas pela Fapesp. "Paga melhor e dá mais status", esclarece Velloso. O processo de seleção das bolsas Fapesp é rigoroso: se o aluno tiver reprovado em uma matéria já é desclassificado. Ele conta que também trabalha com verba do CNPq. Mas enquanto um projeto financiado pelo CNPq significa R$ 150 mil, o projeto obesidade financiado pela Fapesp cobre R$ 2 milhões em quatro anos. "A Fapesp é a instituição que garante, hoje, que se faça pesquisa de alto nível no Brasil", diz Velloso.

"Nós todos temos inveja da Fapesp", brinca o mineiro Ricardo T. Gazzineli, um dos mais importantes imunologistas brasileiros. "Acho que ela mudou um pouco a cara da ciência no Brasil. Serviu como modelo para que outros Estados se comprometessem mais com investimentos em ciência e tecnologia", continua o pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz e professor da Universidade Federal de Minas Gerais. Segundo ele, a Fapemig, a agência mineira que tem 26 anos, passou a ser mais ativa, mas ainda tem que amadurecer. "Não é tão sólida como a Fapesp, que conseguiu se tornar uma instituição praticamente independente do político que estiver no governo."

A fundação assina experiências surpreendentes. O engenheiro elétrico Demi Getschko, diretor-presidente do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br) é tido como um dos pais da internet no Brasil, história que começou na Fapesp em 1988, para interligar as três universidades estaduais paulistas - USP, Unicamp e Unesp - e apoiar a ligação do Brasil à internet. Getschko lembra que era uma época em que pesquisadores voltavam de temporadas em universidades nos EUA e "reclamavam da falta de contato com seus pares para continuar com as pesquisas". Ele resume: "A coisa foi nascendo na área acadêmica, de um jeito espontâneo".

Em um artigo recente, o diretor científico da Fapesp comparou os gastos paulistas em pesquisa e desenvolvimento com os de outros Estados. São 23 vezes maiores que os de Minas, mas o PIB paulista é só 3,6 vezes o mineiro; o gasto de São Paulo com pesquisa é 11 vezes maior que o do Rio, mas o PIB e só 3 vezes maior. "A pesquisa em São Paulo é forte não só por causa da Fapesp", diz Brito. "Mas porque aqui existe um conjunto forte de instituições de ensino públicas e privadas", continua. "A Fapesp financia a pesquisa, mas, se não tiver um conjunto bom de pesquisadores, não acontece nada." Ele lembra que a USP forma, ao ano, 2.200 doutores. "Não conheço outra, no mundo, que forme tantos doutores. Mas os brasileiros não reconhecem esse valor."